Por décadas, as indústrias da moda e beleza perseguiram um consumidor irreal. Agora, buscam ajustar seu negócio para o novo padrão: que é não ter nenhum
A ideia de usar o conceito de normalidade para definir características físicas surge a partir do uso da estatística para explicar o mundo. No início dos anos 40, o ginecologista americano Robert Latou Dickinson e o artista Abram Belskie criaram apresentaram ao mundo duas esculturas: Norma e Normann. As figuras eram resultados de uma pesquisa conduzida por Dickinson com 3.000 homens e mulheres, americanos, caucasianos e brancos, e representavam uma média das características medidas pelo médico -- Norma, a título de curiosidade, era uma mulher de 1,67 metro, 56 quilos, com 86 cm de busto e 26,4 cm de quadril.
Dickinson não era um novato em imagens de anatomia. Desde os anos 1920, ele organizava exposições com esculturas representando o sistema reprodutor humano, sua especialidade. Ele foi pioneiro, por exemplo, a apresentar a imagem de um feto para um público sem relação com a medicina. Isso acontece em 1939, na Feira Mundial de Nova York. Seu trabalho é considerado importante para a conscientização sobre controle de natalidade, educação sexual e para a legalização do aborto nos Estados Unidos -- Dickinson, inclusive, era a favor do direito ao aborto.
As estátuas de Norma e Normann, no entanto, não tiveram um efeito educativo muito positivo. A ideia de um homem e de uma mulher ideais logo caiu no gosto popular. “Em 1945, um jornal local dos Estados Unidos realizou um concurso para encontrar a Norma da vida real. Apenas 1% das mulheres que participaram da competição chegaram perto das medidas de Norma. Embora alguns de nós possamos ter uma média em uma ou até duas características, as chances de atingir a média em nove medições diferentes é quase impossível”, escreve Chaney.
Na prática, o que o trabalho da pesquisadora aponta é a impossibilidade de ser de fato “normal” e “padrão” de acordo com uma média estatística. Ainda assim, a sociedade de modo geral continua correndo atrás de se enquadrar nos termos definidos por Dickinson e Belskie, em parte também pelo marketing das indústrias de bens de consumo que reforça esse movimento.
Essa busca por um ideal estatístico, baseado em uma parcela específica da população, pauta o consumo há décadas. A própria Mattel, fabricante da Barbie, por muito tempo manteve no mercado apenas a versão loira, esguia e com pisada de bailarina da boneca – a norma era a Norma. Nos últimos anos, barbies morenas, negras e de outras etnias começaram a chegar ao mercado, numa tentativa de ampliar a representatividade e a inclusão.
O normal não existe
A verdade é que o padrão Normann e Norma sempre foi uma armadilha para a indústria de bens de consumo. A ideia era que, ao desenvolver produtos voltados para a média da população, as marcas acessariam a maior parte do mercado, sem precisar se preocupar com os extremos, ou seja, pessoas muito fora do padrão. Mas, na prática, estavam fazendo o contrário: a média que era o extremo. Dessa forma, inadvertidamente, as marcas estavam deixando quase todo mundo de fora, e desenvolvendo produtos a partir de um modelo estatístico improvável.
Ao constatar o erro, no entanto, muitas empresas passaram a trilhar um novo caminho, quebrando esse paradigma e buscando criar e inovar para a verdadeira massa, com toda sua diversidade de peles, cabelos, corpos e culturas. O normal é ser fora de padrão.
No Grupo Boticário, termos como “normal” e “perfeito” para a definição de peles e cabelos estão sendo retirados. A meta é que nenhuma embalagem tenha essas palavras estampadas até 2024. “Com pesquisas também escolhemos, meses depois do primeiro anúncio, retirar o termo ‘clareamento’ de peles. Entendemos que o Brasil é diverso, com diferentes tonalidades e tipos de pele e cabelo. Sendo assim, o que é considerado perfeito para uma pessoa pode não fazer sentido para outra”, diz Luis Meyer, diretor de ESG do Grupo Boticário.
De acordo com uma pesquisa encomendada pela companhia, 80% de 3.000 consumidores entrevistados esperam que as marcas de beleza apoiem causas de diversidade. Pensando nisso, a empresa também lançou o movimento Diversa Beleza, com iniciativas como um banco de imagens com fotos de pessoas com vários tipos de peles, tons e texturas. As imagens podem ser usadas por outras empresas e mídias de forma gratuita. “A comunicação mais inclusiva faz parte da nossa jornada de negócios”, diz Meyer.
A Unilever adota um movimento semelhante ao do Grupo Boticário. Em 2021, a companhia lançou uma pesquisa com 10.000 entrevistados em nove países, na qual 56% disseram que a indústria da beleza e cuidados pessoais pode fazer as pessoas se sentirem excluídas.
“Como uma indústria que chega em todos os lares brasileiros não podemos reforçar estereótipos de exclusão”, diz Thaís Hagge, líder de beleza e bem-estar no Brasil. Naquele ano, a companhia anunciou o fim do uso da palavra “normal” em publicidade e embalagens, além do banimento das modificações digitais que alteram o formato, o tamanho, as proporções ou a cor da pele do corpo das pessoas. Outra iniciativa é o compromisso em aumentar o número de anúncios que retratam pessoas de grupos diversificados e sub-representados.
Para Hagge, a iniciativa foi parte de um trabalho que evoluiu nas últimas décadas a partir de ações em marcas como Dove, que há 20 anos aborda a inclusão. “Em 2004 fizemos uma campanha pioneira sobre corpos diversos e reais. Até hoje trabalhamos com o tema da autoestima”, diz ela. O programa Dove pela Autoestima, que trabalha a educação e empoderamento feminino, já atingiu 94 milhões de meninas no mundo todo, com meta de chegar à 250 milhões em 2030.
A luta pelo fim da padronização, contudo, ainda não está ganha. A ideia de “normal” ainda prevalece nas narrativas das companhias e mesmo no desejo dos consumidores. Para Luciana Florêncio, professora do Programa de Pós-Graduação da ESPM, ainda há muito a ser superado. “As marcas estão se adaptando aos novos contextos, mas existe a busca pela média, desde as notas escolares até o estilo e corpo considerado normal. Por mais que haja a quebra de padrões, ainda há muito caminho para percorrer porque, de modo geral, a população reforça os padrões”, ESPM.
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